indie lusitano #1: Cassete Pirata
Uma deriva rock a embalar o cotidiano com canções bonitas.
*Pode gostar se curte: Los Hermanos, Maglore, Supercombo.
**Nas respostas da banda foi preservado o português europeu.
Estava há pouco tempo em Lisboa e aproveitando pouco a oportunidade de entender mais sobre a língua, a cultura daqui, ainda apegada aos meus podcasts e programas brasileiros ou em inglês. Comecei a vasculhar até descobrir uma onda de bandas portuguesas alternativas de rock, punk e pop. O caminho ganhava melhores trilhas.
O fio que começou tudo foi a canção Próxima Viagem, do Cassete Pirata (Spotify ou Youtube). Uma música sobre despedida – esse status que parece ter se tornado rotina na pandemia… de pessoas, de lugares, de hábitos. Eu estava tendo uns dias difíceis com saudades do Brasil. Mas a despedida não é sempre término definitivo; muitas vezes é o passo que antecede o algo novo. Não há próxima viagem sem despedida. Embarquei.
O Cassete Pirata é um dos destaque dessa cena alternativa lusitana. São a cara de Lisboa: coloridos, dão um toque moderno à música portuguesa sem deixar para trás referências do passado. Trazem riffs contagiantes e um punhado de “canções bonitas”, como eles mesmo dizem.
O principal compositor é o cantor e guitarrista João Firmino, o Pir. Completam a malta Margarida Campelo e Joana Espadinha (teclados e voz), António Quintino (baixo) e João Pinheiro (bateria). A discografia inclui um EP homônimo de 2017 e o disco A Montra (2019). O segundo álbum cheio, A Semente, sai em setembro.
Há uma nostalgia gostosa nas letras – na sonoridade também, meio anos 1960-1970 – de A Montra (em Portugal, assim são chamadas as vitrines). Há canções contagiantes (Ferro e Brasa, Outro Final Qualquer, Sem Ar, A Montra, Chora Mãe), outras que são pura saudade (como “Alentejo, veja o clipe depois), mais introspectivas (Guerra e Paz) ou que remetem a despedidas e as indagações sobre o que vem pela frente (Próxima Viagem, Outra Vez, Sem Saber ao Quê - esta, uma deliciosa balada rock).
Este disco é o resultado orgânico, por vezes mais moroso e sinuoso, mas sempre rico e deslumbrante de como é (sobre)viver como banda, como artistas, como personalidades íntegras, neste jogo onde estamos agora a entrar – Cassete Pirata
Toda a gente toca com toda a gente
O Cassete Pirata nasceu em 2016 com “vontade de escrever e descobrir novas canções em português, num regresso às referências, paisagens e sons que todos temos em comum”, eles contam. No caso dos cinco amigos, o jazz era um outro elemento comum — quase todos ou têm discos de jazz ou dão aulas em institutos conceituados do país. Se na sonoridade o jazz dá impressão de passar longe da banda, é no modo de construir as canções que ele aparece.
O facto de todos termos tido esse background de formação e de sermos instrumentistas e arranjadores capazes e com conhecimento, poupa-nos tempo de trabalho para criar arranjos ou mudá-los se precisarmos. Isso claro que não é exclusivamente por termos estudado jazz - mas é talvez uma característica que poderá ter beneficiado por termos passado por lá. Na parte da composição, sobreviveu da passagem pelo jazz e pela música popular brasileira um gosto por harmonia e melodia ricas - CP
E como os Cassete se encontraram? Em resumo: António Quintino cruzou com João Pinheiro na banda d’O Martim. João Pinheiro encontrou Margarida Campelo em um musical. A Margarida toca na banda da Joana Espadinha, da qual Pir também fazia parte. Pir entrou para a banda do Martim onde tocou com o Quintino e com o David Pires (então, primeiro baterista dos Cassete). Pires estava de saída da banda e recomendou João Pinheiro para seu lugar.
Sobre as referências brasileiras, eles continuam:
Música brasileira, em geral, é uma grande influência para nós todos. Muita música chegou inevitavelmente em crianças por causa das novelas da Globo, muita outra chegou também por causa da escola de Jazz : de Chico Buarque a Edu Lobo, Jobim e Vinícius, Caetano e Milton Nascimento, Elis Regina ou Gilberto Gil. Há imensos discos destes autores históricos que muitos de nós ouvimos até decorar. De bandas mais recentes sem dúvida que os Los Hermanos são uma referência assim como os trabalhos a solo quer do Marcelo Camelo como o do Rodrigo Amarante. Tenho ouvido também os discos do Cícero, dos Terno e do Tim Bernardes, da Céu, e os últimos discos da Elza Soares. Claro que estou a esquecer alguém - há muita música brasileira, e muito boa, antiga e recente - CP
Próximo passo
Com um disco entre os mais elogiados de 2019, a banda estava na estrada e preparava um 2020 de mais shows. Mas veio a pandemia e obrigou o grupo a fazer uma pausa e que serviu também de contexto para as novas canções.
A Semente (2021) é um disco conceptual , inevitavelmente marcado por estes tempos confusos em que surgem uma série de perguntas ansiosas sobre que mundo é este que vamos deixar para as futuras gerações. - CP
O primeiro single, Pirâmide, me remeteu ao cenário de desigualdade que a pandemia ressaltou. Enquanto uns sem trabalho ou casa, outros fazem um bate e volta ao espaço… Ou como diz a canção: “uns a comprar casa em Marte, outros sem pão”.
Há uma sensação no ar que as coisas não estão a correr bem, que temos noção das más opções mas não as conseguimos evitar, não sentimos confiança ou poder para uma verdadeira mudança de paradigma. Espero que os próximos anos, já com a pandemia para trás das costas, nos possam trazer essa consciência de que precisamos mais de cooperar do que competir, e que precisamos mais de tempo juntos do que isolados, precisamos descobrir juntos o novo mundo que precisamos construir depois de um evento tão traumático como este- CP
Discografia
A Montra (2019)
A Semente (2021)
OUTROS PITACOS…
Vivendo em Lisboa há quase 10 anos, Mallu Magalhães lançou recentemente um disco com o sugestivo nome Esperança. Esse é seu segundo disco solo morando na cidade, para onde se mudou em 2013 — o primeiro foi Vem (2017), e antes o disco com a Banda do Mar, em 2014). Fato é: em tempos onde o futuro soa tão imprevisível, um disco leve e sobre esperança vem a calhar. No final do dia, é tudo o que temos para seguir. Aqui, a minha favorita, As Coisas.
Eu sei, as coisas não são fáceis, vão e vem tão incompressíveis
E talvez, seja bom que seja assim
Que a gente canta, grita, chora e briga, mas depois dança e ama a vida
Essas coisas que a gente não entende de onde vem
A gente faz mapa astral, brinca com mapa mental, mas você já pensou em fazer seu mapa musical? Essa foi mais uma boa ideia do meu amigo Eduardo Lemos. Apaixonado por música, trabalhando com e sempre escrevendo sobre isso, ele lançou dia desses uma playlist que chamou de “mapa musical pessoal”, um roteiro com 80 músicas que são parte da história dele, passando pelo que ouvia quando criança, guiado pelo gosto dos pais, depois na adolescência, juventude aos dias de hoje.
“Nenhuma outra expressão artística tem uma presença tão forte na vida humana quanto a música. (...) Sei disso, primeiro, por experiência própria. Ao longo da minha vida, percebi que conversar sobre música era uma ótima forma de conversar sobre a vida. Quando meu pai me conta como ele descobriu os Beatles nos anos 60, ele está me dando acesso a cenas de sua vida que me ajudam a entender quem ele é hoje. (…) A música é uma janela privilegiada para olharmos para nós mesmos e para o mundo”, escreve ele.
Listar nosso roteiros musical é um exercício gostoso e que envolve revirar memórias. No meu, há muitas referências de samba e MPB de quando era criança. Meus pais não ouviam rock. A vitrola tocava Alcione, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, enredos de escola de samba em seu tempos áureos. Curiosamente, ou mero efeito da individualidade, eu ouço principalmente rock. Dos dois herdei o gosto por dançar – ainda que não o faça de modo tão elegante…