O Marta é o projeto solo de Guilherme Marta, artista que vem de Viseu e traz na bagagem referências que vão dos grupos folclóricos que assistia quando ia visitar os avós em uma aldeia de Beira Alta ainda criança, o piano que aprendeu a tocar no conservatório de música de Viseu, e depois o rock e a guitarra, instrumento que ele começou a tocar inspirado pelos CDs que encontrava no sótão do seu pai.
O próximo passo foi a composição. Depois de uma banda de covers, fundou a Blazerdogs, que tocaram por vários locais das Beiras em 2015. Em 2019, lançou o projeto Bang Avenue, este com uma cara mais eletrônica e progressiva, um duo co Leonardo Patrício.
Em 2021, Guilherme fez uma viagem de volta às memórias dos tempos de visitas aos avós. Apresentando-se como O Marta, lançou o disco Ó Moça! É Folclore. O disco nos leva para um mar de sonoridades distintas, desde a flauta ao trompete, às harmonias vocais, aos sons das guitarras do indie às percussões tradicionais. Tudo isso combinado com letras sobre temas que vão de questões da existência, aceitação do corpo, críticas ao Estado e à sociedade portuguesa, a globalização, entre outros. Foi sobre o seu percurso até aqui e o novo trabalho que conversei com Guilherme. Mais um papo bom e que você lê abaixo.
Como a música cruzou seu caminho e virou ofício?
Desde muito novo que tive contato com a música, apesar de não ter nascido numa família de músicos, tive a oportunidade de fazer muita estrada com os meus pais para ir a pequenos festivais e romarias. Eles eram consumidores de cultura e peguei nessa característica deles e fiz dela minha também. Comecei a aprender a tocar alguns instrumentos desde muito novo e a formar as minhas bandas, mas a realização de que queria fazer da vida música foi só por volta dos 16-17 anos com uma banda post-punk formada por mim e por um amigo chamada Blazerdog, onde, durante as pequenas tours que íamos fazendo, fui ganhando a vontade de estar em palco, quase como um estímulo que não queria voltar a perder.
Sobre o Ó Moça! É Folclore, era já uma vontade criar algo que mesclasse a música folclórica com algo mais moderno?
As canções do álbum “Ó Moça! É Folclore” nasceram durante a pandemia, ou seja, 2020-2021, algumas foram buscar motivos musicais a outras criações mais antigas minhas, mas a composição original é bastante recente. Eu não sabia muito bem o que estava a fazer, apenas ia fazendo o que me vinha à alma, mas durante esse tempo de isolamento, consumi muita música e descobri os cantares polifónicos, pelos quais me apaixonei, muito provavelmente devido a um sentimento nostálgico vindo da minha infância, onde o folclore esteve presente. Essa realização de que estava a misturar música “moderna” com música folclórica foi muito espontânea.
Há coros femininos e muitas letras fazem referências à figura feminina. De certa forma, é um disco feito para homenagear as mulheres, de certa forma?
Sim, o álbum é uma dedicatória às mulheres da minha vida: às minhas avós, mãe e irmã, que são mulheres beirãs. Daí nasce um dos temas do álbum chamado “A Mulher Beirã”. É curioso que, enquanto produzia este álbum estava a viver com o meu avô e talvez pelo fato da minha avó não estar mais presente, tive a vontade de escrever sobre a figura feminina, sobre a mulher que ela tinha sido e aí levou-me a assumir esse conceito para o álbum. Para além disso, na altura da produção do álbum, eu estava a consumir muita musica coral, essencialmente o cantar polifónico português e até mesmo o búlgaro que é cantado maioritariamente por mulheres, portanto, hoje a pensar nisso, sinto que também terá tido uma grande influência nas letras que escrevi.
Pra quem não conhece, como você descreve a música folclórica feita na Beira Alta? Quais são suas principais memórias dessa música?
Existem vários tipos de cantares, muitos deles religiosos, porque a igreja católica sempre esteve muito presente na vida das pessoas que trabalhavam no campo, então o interior de Portugal ainda é bastante crente, por isso, os cantares e o folclore refletem sempre o cotidiano do povo que o canta e toca. Não existem só cantares religiosos, mas também de trabalho e de festa, portanto é difícil em poucas linhas escrever sobre a música folclórica beirã, porque ela é um aglomerado de histórias e vivências, reflete não só alegria, mas também tristeza, é o reflexo de várias gerações que fazem a música evoluir ao longo dos anos. O Tiago Pereira da MPAGDP, uma vez disse-me que não existe tradição, porque ela evolui, o que se ouvia e cantava ontem, será diferente do que se ouve e se canta hoje. Com o passar do tempo a música popular e tradicional evolui e reflete o tempo em que ela se faz ou se tenta replicar. Eu hoje se for cantar a cantiga popular Arriba o Monte, canto de uma forma muito diferente de como ela era cantada no tempo dos meus avós e essa é a beleza da música folclórica, evolui conosco. Terei sempre boas memórias desta música, lembro-me muito bem da primeira vez que ouvi a Isabel Silvestre a cantar (ícone dos cantares portugueses, ouça aqui) e ter ficado encantado com o poder da sua voz, ainda hoje tenho muito carinho por ela, é um ídolo para mim.
Esse “cantar músicas do passado” tem também a ver com alguma busca mais pessoal sobre identidade, origem?
O meu projeto pessoal não canta músicas do passado. Pega nas influências do passado e junta com as sonoridades atuais que eu produzo. Gosto muito dos instrumentos tradicionais e das vozes polifónicas e acho que uma música só tem a ganhar se explorarmos esses instrumentos ao máximo, mas essa busca pelo passado é de facto pessoal, é uma busca pelo meu “eu”, um olhar para trás, para as origens, uma retrospetiva pessoal, algo que começou espontaneamente e que se tornou algo de maior reflexão à medida que ia terminando as músicas.
Seu single Fado à Portuguesa é uma provocação ao modo de vida português. Qual foi a reação do público da música? Esse single anuncia novo trabalho a vista?
A reação foi muito particular, a música é obviamente uma provocação e deve provocar as pessoas no bom e no mau sentido, o desconforto é algo que deve existir em qualquer tipo de arte, na música muitas vezes esse desconforto é apresentado em dissonâncias ou nas letras dos artistas e o Fado à Portuguesa é uma música que provoca um pouco de desconforto. Num concerto que dei em Sernancelhe existia muito público a beber cerveja à volta do palco nas barracas, sem estar propriamente a ouvir o espetáculo e quando comecei a cantar a música, do nada, toda a gente se calou e ficou a ouvir e senti que afetou de uma maneira forte algumas pessoas, que deixaram os balcões e vieram para a frente do palco ouvir até ao fim e essa é a piada da música, mais que uma canção é um abre olhos e é um pouco isso que quero continuar a fazer. A música não deve ser só música, mas deve ser usada como meio para o artista transmitir algo, quase como uma outra linguagem e na minha opinião essas são as músicas que sobrevivem ao tempo.
Tanto neste último single, quanto em ‘Quando o corpo não te convém’ e outras de suas canções, temos aí um contexto de confronto, provocação à reflexão sobre temas importantes. Acha que a cena portuguesa de hoje segue provocando ou perdeu um pouco do tom dos artistas de intervenção (eram tempos de ditadura, claro, mas hoje ainda temos muitas questões para levantar...)?
Sinto que está a voltar a ganhar essa provocação…durante muito tempo foi esquecido esse lado de intervenção, principalmente na música mais comercial no final dos anos noventa, inícios dos anos dois mil, onde dá quase a sensação de que os artistas tinham vergonha da música portuguesa e começaram a moldar-se aos grandes da industria americana. Não quero dizer que isso não continue a ser feito hoje, mas penso que nessa altura foi quando se perdeu essa tal provocação, no entanto, continuaram sempre a existir bandas e artistas que nunca deixaram ou esqueceram essa provocação e, como referi, essa vontade de mudança, esse lado mais de intervenção está a ressurgir mais uma vez, pelo facto dos jovens adultos cada vez mais se sentirem incapazes de viver e criar família neste país e mesmo quem pensa viver da sua arte é bastante difícil, existem poucos apoios, é tudo feito a recibos verdes, há sempre uma grande incerteza na vida de um artista e em tempos de incerteza nascem provocações.
Há uma dualidade curiosa quando falamos de música feita ontem e a feita hoje, digamos assim. Pra nós, que não somos daqui, muito se fala do fado, mas só do fado, e pouco do que está sendo feito de novo. Pra quem aqui está, talvez sinta falta dessa valorização, não do fado, mas das outras cantigas e tradições. Como você vê isso, especialmente para a sua geração?
Eu gosto muito de fado, mas reconheço que o país deixou-se apegar demasiado à ideia de que o fado é o nosso símbolo, a “nossa música” e com isso descartou tudo o resto. Infelizmente o país, para além do fado, não se divulga muito, não saem muitos artistas para fora, como saem por exemplo do Brasil, é muito difícil fazer tours internacionais se não estivermos ligados de certa forma ao fado, o que é uma pena. Penso que deveria existir um maior esforço de Portugal em projetar os artistas para os palcos internacionais e dar a conhecer a música de grande qualidade que se faz neste país.
Você já teve banda de covers, formou o Blazer Dogs, fez coisas com pegada mais eletrônica no Bang Avenue e agora temos O Marta. Quantas faces musicais tem o Guilherme?
Eu pessoalmente, não consigo parar de criar, desde os Blazerdog até aos dias de hoje, tenho feito imensas músicas, onde 99% delas estão na “gaveta” ou inacabadas. Estou sempre que posso a compor e a produzir, sinto-me mal quando não o faço e gosto de fazer as coisas mais diversas, gosto de explorar texturas e sonoridades, mas sinto que para já encontrei um porto onde gosto de estar e compor, que são os Bang Avenue, onde vão as minhas ideias mais experimentais e O Marta onde vão as ideias mais pessoais e mais provocadoras, mas nunca se sabe os projetos que surgem no dia de amanhã. Atualmente para além de compor e produzir só para os meus projetos, tenho também feito isso para outros artistas, assim posso estar sempre a criar e a partilhar as minhas ideias.
E o que é que não sai da playlist de um artista tão diverso como você?
Existem três bandas que nunca consigo parar de ouvir, que são os Animal Collective, os Radiohead e o António Variações, mas para além destes, gosto de explorar muita coisa, que vai desde o pop/comercial até a bandas mais experimentais. Atualmente ando a ouvir muito Art Pop, nomeadamente artistas como Perfume Genius, Bjork, Arca, etc.
Se for a Viseu…
O meu cantinho em Viseu e de muitos artistas lá é o Carmo’81, um espaço cultural que geralmente tem concertos, exposições, workshops. Se forem durante um fim de semana e esteja aberto, recomendo passarem lá e assistir a algum concerto ou simplesmente beber um copo. A zona histórica também é muito bonita apesar de pequena. É, na minha opinião, obrigatório comer um Viriato em Viseu e para os mais gulosos, ir a Vouzela comer os pastéis de Vouzela. Para quem gosta de natureza como eu, deve ir passear à mata do Fontelo e fazer uma caminhada na serra do caramulo - GM
Aqui você confere o que rola no Carmo´81 e neste link conhece mais da história do Parque do Fontelo. Quanto ao doce viriato (a gente ama dicas de comida!!), trata-se de um bolo em forma de V que herdou o nome do herói mítico de Viseu. A marca "Pastel de Viriato" foi registada pela Confeitaria Amaral em 1995. A receita, exclusiva, é feita com uma massa especial, recheada com doce de ovos e leva uma camada por cima com açúcar granulado.
Já o pastel de Vouzela é o doce mais emblemático do concelho de Vouzela. Nasceu no século 19, fruto do trabalho honrado de uma senhora órfã, que fora adotada quando era criança por nove irmãs, tendo duas destas sido freiras no Convento de Santa Clara do Porto. Mais tarde, vendo-se com catorze bocas para alimentar, recorreu à receita do pastel que lhe fora ensinada pelas freiras.